Júlio Dinis é quem sabia!


     "As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras - galicismos culinários, por exemplo - repugnavam-lhe tanto ao estômago, como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos severos puritanos, a outra qualidade de galicismos.

     Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz do forno açafroado  - esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses; queria-se com o prato clássico da orelheira de porco, e até com aquele outro prato tão castiço como qualquer período de Fr. Luís de Souza  - prato que valeu aos portuenses um epíteto gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão a comer. Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês certo das mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de estrangeirices, as velhas tradições nacionais.

     Em Portugal, terra de lhaneza um tanto rude, mas não afetada, o dono da casa não costumava dantes experimentar a imaginação dos seus convivas com enigmas culinários. Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda. Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas um pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós. Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum a que todas as nomenclaturas aspiram - o de valerem por definições.

     Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu Anfitrião o que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia; era um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada... coisas que toda a gente entendia logo.

     Hoje, a primeira resposta é um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas dagramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades; e por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é - tormento insuportável.

     Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como se come.

     João Semana é que nisto, como em tudo mais, não queria saber de modas. E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de substancial caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida, com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface e azeitonas; atacar com igual denodo, uma porção de roast-beef, não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis da Ilíada; tudo  isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação de pêras de amorim, sem conta peso, nem medida..."

                                                                                         Excerto do livro : "As Pupilas do Senhor Reitor"

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